Embora existindo atitudes diferenciadas entre os vários grupos, um fato é comum: nossa vida é mercada por três acontecimentos fundamentais e não como no calendário de 365 dias dos civilizados. Com algumas variações de grupo para grupo, estes acontecimentos são: o NASCIMENTO, o CASAMENTO, e a MORTE. Falarei em separado de cada um, desde já advertindo mais uma vez, que as diferenças também são significativas entre nômades, seminômades e sedentários, e que resumirei os três temas, pois cada um justificaria um ensaio à parte.
NASCIMENTO
Nós entendemos que cada criança que nasce traz para o mundo novos elementos do Universo e uma mensagem de paz para a humanidade. Também é sinal de continuidade e reforço do grupo. Por isso, a mulher grávida recebe um tratamento especial. O nascimento é motivo para uma festa com duração de até 5 dias, principalmente o do primeiro filho, pois representa a consolidação e a descendência de uma nova família nuclear. O pai ganha prestígio, autoridade, responsabilidade e privilégios, iguais aos de qualquer outro adulto casado, mesmo que seja muito velho.
O ciganinho ou ciganinha geralmente possuirá TRÊS nomes:
PRIMEIRO: É o nome SECRETO, soprado pela mãe no ouvido do bebê na primeira mamada, chamada “dgdbao-kalibó” (leite negro) pelos ciganos Calon. Ele só será conhecido pela mãe. Servirá para preservá-lo das tentações dos demônios, dos entes e “duendes”, pois os maus espíritos para azucrinar as pessoas chamam pelo nome e a pessoa olha. A atenção e o olhar destroem as defesas. Assim os ciganos não olham e nem dão atenção, porque ignoram o seu primeiro nome. Este nome só lhe será revelado por ocasião do casamento. Só mãe e filho poderão sabê-lo;
SEGUNDO: É o de BATISMO e será do conhecimento de todos. A criança poderá ser batizada em várias religiões, (pois cremos que o batizado trás sorte) apesar do RITUAL DOS NOMES ser o verdadeiro batismo cigano. Com o batismo começa a ser forjada a identidade cigana; nosso primeiro mistério e a relação diferenciada com o mundo dos não-ciganos. O ritual de batismo é muito especial, correspondendo ao ingresso da criança na sociedade: as avós e/ou tias tratam de BANHAR a criança num tacho ou bacia de cobre com uma infusão de ervas (alecrim, manjericão etc), tendo no fundo muitas jóias de ouro e moedas, para que seu futuro seja próspero, além de representar a riqueza da vida e a importância do bebê. Ele será apresentado à lua para que o tome como “madrinha”. Para o nosso povo, qualquer criança é um presente de Deus e, por isso, deve ser purificada assim que vem ao mundo. Nosso povo tem um inexcedível amor às crianças. Um casal cigano tem em média de 4 a 8 filhos;
TERCEIRO: Confina-se a ser usado nos PAPÉIS LEGAIS e ao convívio com os não-ciganos. Em muitos grupos é comum a identificação através de um apelido. Para a mulher cigana, a maior infelicidade de sua vida é ser DY CHUCÔ (ventre seco), ou seja, estéril. Nascendo o primeiro filho, os esposos são considerados família autônoma e célula viva do grupo, especialmente o homem, que ganha prestígio, autoridade, responsabilidade e privilégios. Com a maternidade a mulher ocupa seu novo e verdadeiro espaço no grupo. A criança que nasce é também filho da família, do clã e da etnia.
Nota: Antigamente a criança só cortava os cabelos aos oito anos. Quem cortava era o padrinho.
CASAMENTO
O cigano só é considerado um ROM de verdade, quando se CASA, tem FILHOS e constitui FAMÍLIA. A cigana (BURNIN, BUSNÉ) só será considerada realmente CASADA depois do nascimento do primeiro filho.
O casamento é tão importante que é considerado um ponto de honra. Numa festa de casamento a alegria só é interrompida por um momento de tensão: o “rontamento”. Após a relação sexual, a noiva entrega às mulheres mais velhas da família do noivo, uma espécie de anágua ou o lençol manchado de sangue. Só então a tensão se desfaz e a festa continua. Não sendo virgem poderá ser repudiada pelo marido e pelo grupo. Muitas pessoas me perguntam: “E se não sangrar?” Nesse caso, uma “Phuri Dai” (cigana idosa, matriarca) será chamada para examinar a noiva. Ela dirá se a moça era virgem ou não. Como ela sabe, é um dos segredos do nosso povo.
A virgindade, considerada hoje um “tabu superado entre adolescentes não ciganas”, é mantida entre nossas moças por entenderem assim: “Só darei meu corpo a quem eu der a minha alma também”. Antes da crítica à atitude firme de nossas moças, ela deve ser vista com louvor diante da época tão corrompida de hoje, de uma sociedade tão permissiva e relaxa.
Ciganos casam-se cedo (hoje entre 14 e 16 anos) para preservar sua cultura e valores. Mas não são raros os casamentos de ciganas aos 10 anos de idade. Incentivamos o casamento entre os membros de nossa etnia, pelo fato da filosofia de vida entre um cigano e um não-cigano ser tão violentamente diferente, que seria difícil a união dar certo.
Ao contrário do que muitos pensam a paixão e a sensualidade nem sempre estão presentes nos casamentos. O romantismo dá lugar a critérios mais objetivos, como por exemplo, a capacidade da futura noiva para ganhar dinheiro, ou a habilidade no noivo para os negócios.
A mãe da noiva tem direito de opinar sobre a conveniência daquela união. Hoje os filhos também podem não aceitar (mas dificilmente o fazem), primeiro porque respeitam os mais velhos, segundo por acharem que o casamento é o maior presente que os pais poderão lhes dar, após ter-lhes dado a vida.
O celibato é mal visto e, adultério, poligamia e homossexualismo são intolerados! Nem guerras, nem crises ou revoluções merecem mais atenção do que o casamento, aquilo que realmente altera a estrutura da família cigana - base de nossa própria organização social -.
Por ser considerado tão importante, o casamento é um ritual complexo, que envolve uma preparação especial, podendo o noivado durar de alguns dias a meses.
É verdade que existe o DOTE: ele é combinado entre os pais, podendo a negociação ser mediada por um barô (líder, chefe) e pago como compensação pela perda da filha, que passa a pertencer a família do marido, só voltando se enviuvar. Quanto maior for a beleza e as virtudes de uma cigana, maior será seu dote.
Atualmente, o “dote” é simbólico, e os presentes dos noivos (geralmente dinheiro) são postos num tacho de cobre ou numa urna de barro (kufia).
Em alguns clãs, após o casamento os noivos atiram uma taça, pote ou um prato no chão, supondo que o amor só acabará “quando os cacos se juntarem”.
O casamento cigano ainda é um dos poucos indissolúveis que existem (são raras as separações) e as mulheres são extremamente fiéis e dedicadas aos respectivos maridos. Como já disse o adultério e a bigamia não são tolerados.
O abiel romanô (festa de casamento) dura em média 3 dias e começa com a armação de duas tendas, cada qual com uma bandeira em cima. O primeiro dia é dedicado à preparação das comidas; no segundo acontece uma reunião na tenda da noiva e a distribuição de flores para os noivos, começando pelos pais e estendendo-se aos demais convidados; no terceiro dia, acompanhado pelo pai e empunhando uma bandeira vermelha (que simboliza a honra), o noivo vai à tenda da noiva, onde entrará “forçando” a passagem. Lá dentro é convidado a beber com os pais dela, começando um diálogo preestabelecido.
A certa altura do diálogo, a jovem será erguida acima da mesa e entregue a ele. As mãos de ambos serão unidas por um pano vermelho, ao mesmo tempo em que um ancião faz votos de felicidade e lhes entrega um pedaço de PÃO (simbolizando o corpo de Cristo) com SAL (para afastar os maus espíritos).
Geralmente é um kaku ou uma phuri daí quem oficializa o casamento, muito embora os ciganos venham também optando pelo casamento católico. No final da festa a noiva retorna à casa dos pais, onde haverá outra festa mais íntima: ela receberá o DICRÔ (lenço de cabeça, símbolo da mulher cigana casada), significando que ela tornou-se uma BORI ou BORIA (nora, uma filha para a família do marido). Só então se mudará para a casa do marido e o casamento será consumado.
A cerimônia é mercada pela fartura de comida, bebida, dança, música e alegria. O casamento objetiva a prole, de forma que a esterilidade é considerada uma maldição!
NOTAS:
A cada dia ocorrem menos casamentos por prometimento. Mas se uma cigana foge com um homem que não pertence a comunidade, cigano ou não, ainda corre o risco de ser punida. Fugir tornou-se um recurso para evitar casamentos indesejados. A cigana fugitiva, será procurada por 2 dias e se encontrada, poderá ter seus cabelos raspados ou ser até morta. Quarenta e oito horas após a fuga poderão retornar e justificar-se perante seu povo. Terá de ter mantido a virgindade. Por uma dessas “fugas”, recentemente em Campinas (São Paulo), os pais de uma cigana tiveram que “indenizar” os pais do noivo pretendente a bagatela de 100 mil reais;
As datas dos casamentos são estabelecidas pelas mães e madrinhas que elegem, sempre, o período fértil, já que a procriação é idéia fixa nas famílias ciganas;
Em muitos grupos, a gestante, objeto diuturno de atenções, desvelos e projeções é preservada até de ver e de ouvir fatos desagradáveis (aleijões, notícias de morte, máscaras e fotografias feias, etc), pois acreditamos que influenciariam negativamente na gestação;
Ela deve ficar cada vez mais bonita, gorda, viçosa, alegre, movimentada, feliz, dado que os ciganos têm como certo que a gestante partilha o seu corpo e sua alma para completar o corpo e a alma da futura criança;
Embora a Kris Romaí não participe do compromisso de casamento, mas reconhece-o como ato perfeito, caso exista uma separação entre os cônjuges, determinará quem fica com os filhos, e também a partilha de bens, que o marido separa e a esposa escolhe com as respectivas famílias.
MORTE
Nosso povo não se deixa abater por lágrimas e tristezas, pois a ALEGRIA é nosso mandamento maior. Não encaramos a morte como os gadjôs. A morte é para nós um tema sagrado. No além, pátria eterna dos mortos, habitam aqueles ciganos que estão investidos de todo poder, e a eles é confiado o destino da comunidade. Os mortos são a ponte entre Deus e os homens; devem ser respeitados e cultuados.
Apesar desta visão, na morte e no luto é que vemos mais vibrante o amor cigano pelos seus. Todos choram, gritam, lamentam, fazem discurso e elogios ao falecido, exaltando suas qualidades. Acendemos velas e contratamos um enterro digno.
O corpo é velado por dois dias, quando então chamamos o “religioso” para encomendá-lo. Depois se queima seus pertences. Antigamente queimava-se até seu vurdon (carroça) e abatia-se seu cavalo. Se o morto é o marido, a mulher se descabela e dá gritos inenarráveis, parecendo o fim do mundo! Guardará o luto em definitivo, nunca mais tirando o dikrô da cabeça.
Nos funerais pedimos pouco pelo descanso da alma; os ritos de enterro têm por finalidade apaziguar o defunto. Para nós, o pior é ser mal enterrado. Por este motivo, nos cemitérios, as sepulturas dos ciganos são as mais bonitas e as mais ornamentadas.
Dependendo do grupo, no terceiro ou nono dia acontece os rituais da POLMANA: uma reunião de família em torno de uma grande mesa, na qual três turmas de convidados se revezam. Na cabeceira da mesa senta-se alguém representando o falecido (em outros grupos a cadeira ficará vazia), vestido com a roupa que ele mais gostava, sendo referenciado por todos e servindo-se em primeiro lugar. Depois os homens são os primeiros a tomarem assento.
À luz de 41 velas rezamos por seu espírito e comemos os pratos preferidos dele, num gesto que objetiva lhe dar “força” para a nova caminhada. O ritual de polmana é uma espécie de “missa” em que se pede perdão e misericórdia a Deus em nome do falecido. Após o almoço, juntamos os restos de comida e os depositamos sobre uma toalha aberta, na margem de um rio ou junto a uma cachoeira.
Ato contínuo, uma cigana lança nas águas um barquinho com três pãezinhos ou rosquinhas de farinha de trigo, onde no meio terá uma vela acesa. Esta oferenda representa o sopro e a benção de Deus. Acreditamos que assim, o morto saciado de fome e de sede, se desprenda dos bens terrenos. O barquinho levará sua alma através das águas e a vela fará luz, afugentando os espíritos das trevas.
Repetimos o ritual 40 dias depois, período em que acreditamos que ele ainda poderá está andando pelo mundo até perceber que morreu. Os mortos são dignamente respeitados e, em respeito a eles, daí em diante todos evitam pronunciar seu nome, principalmente à noite.
Quando acontece de se falar sobre o morto, dizemos – aqui em Romani -: Thie Avel Hertô (Que Deus o salve e o guie). Alguns grupos repetem este ritual no sexto mês, no primeiro ano e, depois nos dias de finados. Somos reencarnacionistas e acreditamos que, “quem nasce cigano em uma vida será assim por todas as outras sucessivas”.
Celebramos também o aniversário de morte, porém no dia 1º de novembro, fazendo a festa de “Todos os Santos”, constituindo-se uma ocasião para uma reunião dos familiares.
Para ir para o céu, um cigano não deve ter blasfemado muito o nome de Deus e não deve ter matado ninguém.
Notas:
A POLMANA costuma ser descrita por nove entre dez ciganólogos como se fosse comum a todos os ciganos, quando na realidade se trata apenas de características culturais Kalderash, embora todos os outros grupos ciganos possuam ritos de “passagem”.
Quando se trata da morte de uma pessoa jovem, uma moça virgem ou de uma criança, soltamos também uma pomba branca no ritual da polmana, simbolizando a pureza;
As mulheres Calon, por ocasião do falecimento do marido, cortam o cabelo e vestem-se de luto. Muito raramente a viúva se casará outra vez. O tio materno assumirá e responderá pela família.
A cultura Kalderash, praticamente a única conhecida do grande público não-cigano é apenas uma das inúmeras sub-culturas ciganas hoje existentes em todo o mundo, cada uma das quais com características próprias, resultantes de histórias diferenciadas de convivência, quase nunca pacífica, com as mais diversas sociedades e culturas.
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